
Carlos Ayres Britto(*)
“Não quero saber das suas leis.
Quero saber dos seus intérpretes.”
Martin Luther King
A vida é feita de pares de opostos. Como na proposição hegeliana da tese e da antítese. Por isso que a física quântica e a neurociência chegaram a uma conclusão já esperada: o cérebro humano é também dual. Binário. Ele se compõe de um hemisfério esquerdo e de um hemisfério direito, este último a aninhar o sentimento ou inteligência emocional, e, aquele, a hospedar o pensamento ou inteligência intelectual.
2. Pois bem, no hemisfério cerebral direito é que ficam os dotes do indivíduo para uma instantânea visão de conjunto da realidade. Dotes que são um misto de intuição e imaginação ou outro nome que se dê à capacidade humana de saltar para as grandes sínteses sem necessidade de análise. O que pressupõe firme disposição para o questionamento de dogmas ou mantras de qualquer procedência; olhos sempre acesos e ouvidos permanentemente abertos para o mundo circundante, como quem se disponibiliza para o recado das coisas, do cosmos, da vida; coragem para “aprender a desaprender” (Fernando Pessoa) e, assim recomeçar de um marco teórico zero, que não é outro senão a experiência do nada como ponto de partida de apreensão do real; sereno desassombro no enfrentamento das tensões existenciais da mais elevada temperatura. Tudo desaguando no estuário do mais original dos conhecimentos, que é o conhecimento in natura ou de primeira mão, na medida em que obtido num súbito de percepção. Em suma, hemisfério cerebral mais sanguineamente irrigado, porque nele é que estala o feminino raio da arte e espocam as autênticas vocações místicas.
3. Já o lado esquerdo do cérebro humano, é nele que se manifestam as nossas maiores aptidões para o focado isolamento dos fenômenos a investigar, e, nesse compartimentado âmbito de investigação, um atuar com o mais objetivo rigor de Ciência: método, pesquisa, estudo comparativo, análise, testes, reflexão, cálculo, planejamento, demonstração. Por consequência, trata-se de um laborar por forma pasteurizada ou friamente processualizada, com todas as cautelas de quem lida com peças de cristal ou artefatos de grande poder explosivo, metaforicamente falando. O que nos aquinhoa com um tipo de conhecimento indireto, também chamado de discursivo ou especulativo. Conhecimento progressivo ou por aproximações sucessivas, enfim, tão mais voltado para o valor da segurança jurídica quanto o conhecimento intuitivo-emocional se faz vizinho de porta de tudo que tenha gosto e cheiro de justiça material.
4. Está-se a lidar com potencialidades neurais (o sentimento faz parte do nosso estoque de neurônios, tanto quanto o pensamento) que são decisivas para a formação equilibrada de cada ser humano, e, com mais razão, daqueles profissionais que habitualmente julgam os concretos interesses de cada um desses seres humanos: os juízes. Juízes de todas as instâncias, inclusive dos mais altos tribunais. E o fato é que tais potencialidades neurais devem ser harmoniosamente integradas numa espécie de casamento por amor que tenha o dom de partejar o rebento da consciência. Valor agregado que resgata a inteireza do ser humano, por dotá-lo de uma visão esférica de si mesmo e de tudo o mais (sabido que na figura geométrica da circunferência estão contidos todos os ângulos). Ainda mais, consciência que se traduz naquele tão desejado “caminho do meio” a que se reportava a clássica filosofia grega; ou seja, o ponto de unidade possível entre polaridades, constituindo-se, ela, consciência, naquele tipo de inteligência que os mais aclamados físicos quânticos da atualidade chamam de “inteligência espiritual”. Danah Zohar à frente.
5. Ora, é essa inteligência espiritual, verdadeiro estado de osmose da nossa originária compostura racional com a de natureza emocional, que vai operar como uma espécie de terceiro olho. Mas um terceiro olho tão agudamente penetrante que vara a carne do real para radiografá-la por todos os aspectos. A traduzir um crescimento interior que já corresponde a uma transformação qualitativa do sujeito que se põe como atento observador de tudo que lhe seja externo e também interno. O que lhe possibilita pegar carona no movimento essencial das coisas de que a vida se compõe (“o ser das coisas é o movimento”, ensinou Heráclito) para entabular com elas um tipo de diálogo que, embora surdo, é de mútua influência. O sujeito cognoscente a não mais se separar do objeto cognoscível para neste último desencadear reações e vice-versa. O investigador humano a se entregar por inteiro aos fenômenos investigados e estes a retribuir com a revelação da inteireza do seu próprio ser a cada momento da sua cambiante performance telúrica.
6. Assim também é que deve ser na interação do juiz com os dispositivos constitucionais e legais a aplicar, na perspectiva do desentranhamento da norma que o caso sob julgamento vier a exigir. O juiz a se entregar por completo a essa coisa viva que é o dispositivo jurídico a interpretar, para que este se entregue por completo a ele, juiz, presenteando-o com possibilidades normativas muitas vezes tão inéditas quanto insuspeitadas (“a vida só se dá pra quem se deu”, versejou Vinícius de Moraes). Com o que esse comunicativo juiz revela, mais que linear tecnicalidade, mais que descontrolado derramamento de bílis, a sobredita evolução como pessoa. Mudança de mentalidade, então, mais que de simples comportamento pessoal. Logo, aprimoramento do magistrado não só enquanto profissional como também na condição de ser humano à cata de sua plenitude existencial. Na linha daquela proposição espiritual que Shakespeare eternizou no juízo de que “transformação é uma porta que se abre por dentro”.
7. Esse é um novo tipo de juiz. Um juiz militantemente voltado para a conciliação dos polos da mais importante das dicotomias humanas (pensamento e sentimento), a fim de também conciliar a principal das dualidades com que profissionalmente labora: segurança e justiça material. Esta última a se fazer presente naqueles valores que mais dignificam a vida em sociedade, de que servem de amostra a moralidade administrativa e a inclusão político-civil, social e fraternal dos seres humanos. Donde já se poder falar da Democracia de três vértices “justamente a liberal, a social e a fraternal” como um holístico “Estado de Justiça”. Algo bem mais avançado que um simplista e não raro delirantemente formalista “Estado de Direito”.
8. Enfim, estamos a falar de um novo tipo de juiz que, além de interagir dialogicamente com as normas que lhe compete aplicar no mais elevado grau das respectivas possibilidades, procura auscultar os reais anseios da sociedade para ver até que ponto eles encontram resposta em nosso ordenamento jurídico, de sorte a viabilizar a formatação de fundamentadas decisões. Com o que promove a conciliação do Direito com a própria vida. Se se prefere, um juiz que opera dentro de si a referida conciliação entre pensamento e sentimento, para poder alcançar um estado de consciência que o conduza à mais perfeita combinação entre a ciência e a arte, a firmeza e a leveza, a atenção e a descontração, o breve e o intenso. Um juiz que somente terá por questão fechada sua abertura para o novo.
(*) Ministro do STF. Doutor em direito constitucional pela
PUC de São Paulo. Membro da Academia Brasileira
de Letras Jurídicas.