
No primeiro semestre de 2014, o Ministro LUIZ FUX reconheceu, no ARE n. 713.211 (Celulose Nipo Brasileira S/A v. Ministério Público do Trabalho e Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Guanhães e Região), repercussão geral para o tema da constitucionalidade da Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que estabelece, no cenário jurídico-laboral brasileiro, limites civilizatórios para a contratação de terceiras empresas fornecedoras de mão de obra de substituição. E, seja pelas peculiariedades do caso, seja ainda pelas movimentações percebidas desde então, emerge o receio de que, com um golpe de caneta, o Excelso Pretório consuma uma violação maior para o valor social do trabalho que o próprio PL n. 4330, ainda em trâmite pelo Congresso Nacional.
Com efeito, em sede de EmbDcl no AgRg no RE com Ag (ARE) 713.211/MG, em plenário virtual, o STF admitiu ao regime de repercussão geral o exame dos “parâmetros a serem observados para a identifi cação de que tarefas podem ser terceirizadas por empregadores”, abrindo margens para se discutir, em sede constitucional, a inteligência da Súmula n. 331, I, do TST. No entendimento do Ministro FUX, “(...) a proibição judicial de contratação de mão de obra terceirizada não decorreu da análise de um texto legal específico, mas de uma compreensão pretoriana que almejou delimitar o princípio da legalidade no âmbito das relações trabalhistas”. No entanto, é justamente com esse verbete que o Tribunal Superior do Trabalho tem assegurado mínima indenidade para a dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho, reconhecendo fraude nas chamadas “terceirizações de atividades-fim” (inciso I). Exemplos gritantes de tais fraudes reveleram-se, durante os anos oitenta e noventa, nos mais variegados segmentos econômicos. No setor calçadista, p.ex., empresas de calçados desativaram setores inteiros de suas linhas de produção para substituí-los por cooperativas de mão de obra formadas basicamente pelos ex-empregados do setor, agora contratados como “autônomos”. Na prática, eram recontratados sob remuneração real sensivelmente inferior. No campo, ademais, obreiros foram frequentemente reintroduzidos nas lavouras em condições de neoescravidão (art. 149 do CP). Além disso, mesmo nas terceirizações lícitas, a Súmula n. 331 assegura mínima liquidez para os créditos trabalhistas sonegados, na medida em que, diante da inidoneidade econômica da empresa prestadora, a própria empresa tomadora pode ser chamada a responder com seu patrimônio, em caráter subsidiário (inciso IV).
Pelos bastidores da admissibilidade dessa repercussão geral — que, diga-se, poderia há anos ter sido reconhecida (a Súmula n. 331 conta com quase vinte anos, mas somente agora seu texto chega ao STF, ao ensejo de um especial “alinhamento” de pessoas, circunstâncias e interesses) —, setores sindicais, acadêmicos e institucionais temem pelo pior. E o pior, neste
caso, seria a declaração de inconstitucionalidade do verbete, ou de uma interpretação conforme sucedânea, para doravante autorizar, a bem da livre-iniciativa, qualquer tipo de terceirização
de mão de obra, sob quaisquer circunstâncias, assegurada a mínima formalidade contratual.
Com tal liberação, para dar um único e nefasto exemplo, um hospital público não precisaria ter empregados próprios: a entidade instituidora simplesmente terceirizaria os administradores, os médicos e os serviços de enfermagem, além das chamadas “atividades-meio”, que tradicionalmente já são terceirizadas (vigilância, limpeza, alimentação etc.). O trabalho humano
passaria à condição de mercadoria livremente negociada no mercado, ao inteiro alvedrio das leis de oferta e procura.
Daí que, a vingar essa nefasta inversão hermenêutica, anteveem-se já três efeitos práticos de grande impacto social, observáveis a médio e longo prazos:
(a) a desaparição do Direito do Trabalho como se construiu no Brasil, sob a égide de um princípio da proteção do trabalhador (art. 7o da CRFB);
(b) a fragilização irreversível da organização sindical brasileira; e
(c) a desaparição da própria Justiça do Trabalho.
Em todos esses horizontes, as finalidades estatutárias da ANAMATRA impõem-lhe atuar, com absoluto rigor. E, entre todas, duas em especial: a preservação da Magistratura do Trabalho,
em sua entidade, na sua autonomia e nos seus direitos e prerrogativas; e a defesa da integridade e da progressividade dos direitos sociais.
Nessa ordem de ideias, importa questionar, na linha reversa, se a franca liberação das contratações de mão de obra — para atividades-fim e atividades-meio — poderia ser validamente consumada na ordem jurídica brasileira, por lei ou por decisão judicial. Indagar da sua constitucionalidade, à luz dos arts. 1o, IV, 1a parte, 6o, 7o, 170 e 186, III, todos da Constituição
da República; e, antes mesmo dela, indagar da sua convencionalidade, considerando-se o atual barema jurídico de proteção (condensado na Súmula n. 331 do TST) e o que está disposto no artigo 26 do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil (Decreto n. 678/1992) e já considerado pelo STF como direito supralegal (v. RE n. 349.703, RE n. 466.343 e HC n. 87.585):
“Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.”
No artigo 45 da Carta da Organização dos Estados Americanos, por sua vez, lê-se:
Os Estados-membros convêm em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição equitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convêm, da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas básicas: [...] g) Salários justos, oportunidades de emprego e condições de trabalho aceitáveis para todo; [...]”. Pois bem: franquear a terceirização de serviços para todo e qualquer objeto social, sem mínimas garantias, signifi cará progresso nos quesitos da justeza dos salários, da igualdade de oportunidades e das condições aceitáveis de trabalho?
Para a ANAMATRA, a resposta é “per se” evidente. De todo modo, o que virá, num sentido ou noutro, afetará visceralmente o futuro de todos nós. Estejamos atentos.
A Comissão Editorial