
Como é de conhecimento comum entre juízes do Trabalho, as finalidades estatutárias que guiam a atuação política da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho —
ANAMATRA incluem, entre outras, a de “atuar na defesa dos interesses da sociedade, em especial pela valorização do trabalho humano, pelo respeito à cidadania e pela implementação da justiça
social, pugnando pela preservação da moralidade pública, da dignidade da pessoa humana, da independência dos Poderes e dos princípios democráticos” (art. 5o do Estatuto). Nos tempos atuais,
atender razoavelmente a esses escopos tem sido tarefa de uma notável dificuldade, em especial nos domínios do Parlamento.
Que a composição das duas casas legislativas federais ostentaria um perfil conservador e patronal sem precedentes no Brasil pós-ditadura já se sabia, desde a leitura dos primeiros mapas parlamentares resultantes das eleições nacionais de 2014. Não se imaginava, porém, que a ousariam tanto.
Não são poucas, com efeito, as iniciativas legislativas que, se aprovadas e implementadas na sua inteireza ideológica, seriam capazes de fazer retroceder gravemente — em um ou dois séculos — os padrões de proteção social conquistados pelos trabalhadores desde o advento da Segunda Revolução Industrial.
Duas dessas iniciativas, em particular, merecem menção.
A primeira delas é o PLC n. 30/2015, que pretende regulamentar a terceirização no Brasil. Trata-se do PL n. 4.330-C/2004, como aprovado na Câmara dos Deputados, que agora tramita no Senado da República. Pelo texto em curso (art. 3o), o critério atualmente em vigor para aferir a legalidade das terceirizações, baseado na distinção entre atividades-fim e atividades-meio, é
substituído por outro, importado da Europa, baseado na ideia de “especialização” da atividade. Uma vez aprovado, os empresários brasileiros poderão terceirizar qualquer atividade, inclusive
aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o façam por intermédio de uma “empresa especializada, que presta serviços determinados e específicos, relacionados à parcela de qualquer
atividade da contratante”. Os defensores do projeto dizem que isto calará as cortes trabalhistas, porque já não haverá a margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio. Iludem-se. O litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa “especializada”, que detenha know-how diferenciado para aquela atividade (i. e., se oferece mesmo “serviços técnicos especializados”), ou se é apenas um simulacro de empresa, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão de obra comum à tomadora. Assim, p. ex., a varrição de dependências configura um “serviço técnico especializado”? E o atendimento de balcão? Tudo isto, ademais, com agravante: do novel “paradigma” — das “atividades técnicas especializadas” —, o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará. Enquanto isto, não obstante sejamos membros fundadores da Organização Internacional do Trabalho (e signatários da Declaração de Filadélfia, por meio da emenda de 1948), passaremos a ver, em nosso horizonte próximo, a explícita mercancia da força de trabalho humana: empresas tomadoras já não buscarão, nos mercados locais e regionais, candidatos para suprir vagas de empregos; procurarão, ao revés, horas de trabalho que, oferecidas em “lotes”, possam ser adquiridas pelo menor preço possível.
A segunda delas é o PLC n. 18/2015 (Congresso), que converte em lei a Medida Provisória n. 680/2015 (a que instituiu o Programa de Proteção ao Emprego) e agora incorpora um “jabuti”
legislativo que, à maneira do que há catorze anos se tentou fazer a partir do art. 618/CLT, agora altera o art. 611/CLT para fazer prevalecer, como princípio, o negociado sobre o legislado. Este projeto, aliás, tem caminhado a passos largos e lépidos, contra tudo e contra todos, apesar da sua patente desconformidade. Com efeito, contrabandos legislativos insertos em textos que pouco lhes dizem respeito tanto violam os regimentos internos da Câmara e do Senado como são textualmente repelidos pelo art. 7o, II, da LC n. 95/1988 (“a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”).
Nada obstante, o PLC n. 18/2015 obteve larga aprovação na respectiva comissão mista especial, no último dia 1/10, seguindo agora para votação em plenário. Pelo preceito inserido às pressas no relatório, todas as condições de trabalho negociadas pelas categorias econômicas e profissionais passam a prevalecer sobre a lei em vigor, “desde que não contrariem ou inviabilizem direitos previstos na Constituição Federal, nas convenções da [...] OIT, ratificadas pelo Brasil, e as normas de higiene, saúde e segurança do trabalho”. Ao menos havia, no relatório original do relator (Dep. Daniel Vilela), a previsão de que, para que o negociado pudesse efetivamente prevalecer sobre o legislado, o conjunto das normas ditadas nos acordos ou convenções coletivas de trabalho, “considerado globalmente”, haveria de ser mais benéfico que o conjunto legislativo equivalente (seguindo de perto o que já previa, noutro contexto, a Lei n. 7.064/82). Mas sequer esse último laivo de proteção resistiu: na votação final, deu-se a sua exclusão por um destaque supressivo.
Com a novidade, passaria a ser possível, p. ex., negociar coletivamente as parcelas in natura para além das restrições do art. 458, § 3o, da CLT, remunerando-se com alimentos o equivalente
a quase toda a remuneração o obreiro, respeitado o limite de trinta por cento do salário mínimo (art. 82, parágrafo único, CLT), ou talvez nem isto. Dividir o décimo terceiro salário em três, quatro ou cinco parcelas anuais, ao gosto do que deliberarem as “categorias”, independentemente de qualquer situação de crise a abater o respectivo setor econômico. Reduzir ou até mesmo eliminar as hipóteses de interrupção do contrato de trabalho previstas no art. 473 da CLT (que hoje funcionam, para os trabalhadores, como licenças remuneradas legalmente fruíveis). A lei trabalhista, enfi m, sairá sumamente desprestigiada.
Ao que se vê, o Brasil está, aos poucos, pavimentando a sua estrada de volta para o século XIX. Ou para mais aquém. Freud havia dito, em “Totem e Tabu” (1913), que, em relação aos
soberanos, os povos primitivos faziam-se reger por dois princípios, a um tempo contraditórios e complementares: “É preciso se proteger deles e é preciso protegê-los” (na dicção de Frazer, “[h]e must not only be guarded, he must also be guarded agaisnt”). Mas para se proteger deles era imperioso, não raro, buscar neles o socorro: “o contato do rei se transforma em remédio e prevenção para os perigos que resultam do contato do rei”...
Pois bem. O primeiro quartel deste século testemunha, no campo dos direitos sociais, o revigorar da imagética totemista. Há que proteger o cidadão dos rompantes neoliberais do Estado
— quiçá a partir do seu próprio toque curador (que será, amiúde, o toque do Estado-juiz). E, ao mesmo tempo, há que proteger o Estado do seu próprio desmonte como Estado social. Resistir
ao obsoleto État gendarme, que a História sepultou há mais de um século.
Neste nebuloso contexto, de abertas tensões e vacilante futuro, a Revista também oferece a sua pequena contribuição. Publicamos, no presente volume, artigos e julgados que, de modos diversos, refletem a ação concreta da Magistratura do Trabalho, na jurisdição e na academia, para a (re)descoberta de um Direito social vivo e atuante. Eis o bom combate a combater.
Boa leitura a todos!
A Comissão Editorial