
O ato de um jovem tunisiano, ao atear fogo no próprio corpo, provocou uma série de mudanças no mundo árabe, derrubando ditaduras e levando o povo, oprimido anos a fio, às ruas. Há uma onda que reclama por democracia e participação popular efetiva, cujo desfecho e proporções ainda não são conhecidos e nem podem ser mensurados, porquanto ao clamor por mudanças resistem as oligarquias. Uma coisa, porém, é possível afirmar desde já: nada será como antes naqueles países.
Nos demais rincões onde superiores os padrões de democracia, as revoluções costumam ser silenciosas, mas continuamente processadas por meio das alterações inevitáveis no seio da sociedade. O direito tem se constituído como mecanismo essencial à manutenção do sistema democrático, diante desse contínuo movimento evolutivo. Aliado a outros saberes, mas por seu intermédio, a vida comunitária é insuflada de maior racionalidade, permitindo mais harmonia na convivência intersubjetiva.
Entre nós, a EC n. 45/2004 ampliou sensivelmente a competência da Justiça do Trabalho. Por seu intermédio, procedeu-se à devolução de integridade ao mais social dos ramos da ciência jurídica, conduzindo a um passo a mais na consolidação das promessas advindas da Constituição. O sentido inequívoco dessa reforma consiste em que as lides afetas ao mundo do trabalho, em suas dimensões individual, coletiva e também administrativa, sejam submetidas à apreciação da Justiça Especial, cuja vocação, comprovada por sua história, consiste na preservação do padrão de civilidade de quem vive do trabalho.
Decorridos mais de cinco anos da profunda ampliação de competência promovida, a materialização do avanço constitucional vem encontrando uma série de entraves. Há uma grande dificuldade, por parte do próprio Judiciário, de compreender o verdadeiro rumo das mudanças. Isso é facilmente verificado em certas decisões dos Tribunais Superiores, quando restringem a relação de trabalho à noção de emprego, bem como ao suprimirem o campo competencial relativo aos servidores públicos a esferas ainda menores do que a existente antes do advento da referida Emenda Constitucional. No plano horizontal, a situação não difere. Exemplo recente foi fartamente noticiado pela imprensa, quando a Justiça Federal comum teria proferido decisões relativas à greve do setor aeroviário. Trata-se de manifesta invasão de competência, na medida em que o exercício do direito de greve tem assento constitucional e qualquer discussão que com ele se relacione insere-se na competência exclusiva da Justiça do Trabalho.
É elementar que um Estado de Direito exige o cumprimento da ordem constitucional por todos. Porém, exige ainda mais, se isso é possível, daqueles que integram o Judiciário, pois deles se espera o resguardo e garantia dessa mesma ordem. A postura esperada do aplicador do direito nunca foi tão criativa quanto o é nestes tempos pós-positivistas. A ciência jurídica não permite mais uma conduta passiva do Judiciário, limitado à triste figura da “boca da lei”. Ao contrário, exige comprometimento com o que é atual, novo e capaz de tornar concretas as promessas constitucionais. É necessária a percepção dessa exigência por parte de toda a magistratura, pois, na sua dimensão positiva, os direitos fundamentais dela muito dependem para sua realização. Portanto, a observância estrita da redivisão das distintas competências jurisdicionais acaba por estar inserta na própria questão de legitimidade de todo o Judiciário enquanto poder.
Comissão Editorial